31.1.09

Roda Gigante

Estava parada, no que seria o acostamento da estrada de terra a qual ligava a cidade à sua casa, na periferia. Será que era realmente possível o que via? Caminhões buzinando e carros passando e ninguém, além dela, presenciava aquilo. Cartazes gritavam a quem quisesse ler: o Parque de Diversões Slamagov estava de volta à pequenina cidade de Nossa Senhora dos Aflitos!
...Os olhos castanho-claros de Lúcia se encheram de lágrimas, talvez pela poeira levantada por toda aquela gente na estrada desacostumada de movimento. Quando achou que a carreata já tivesse terminado, ganhou novas esperanças ao ver o caminhão pelo qual esperara dois anos, três meses e dezessete dias. Ela tinha retornado: a Roda-Gigante Cor-de-Rosa vinha sendo transportada com a devida reverência, afinal de contas, continuava a ser a atração principal do Slamagov.
...A jovem menina lembrou-se da noite com cheiro de pipoca vermelha, há pouco mais de dois anos, quando sentira a emoção mais extraordinária dos seus onze anos de existência. O Parque de Diversões passara na cidade uma curta temporada de alguns dias. Ela se deslumbrou assim que ouviu pela primeira vez aquela voz do alto-falante, gritando desde a estrada até o centro de Nossa Senhora dos Aflitos: “Senhoras e senhores, crianças e idosos, venham todos! O Parque de Diversões Slamagov acaba de chegar à sua cidade!”. Durante aqueles dias que o grupo permaneceu em Nossa Senhora dos Aflitos, Lúcia não falava em outra coisa. Sem conseguir entrar no local, enxergava, do lado de fora, apenas a ponta mais alta dela: a Roda-Gigante Cor-de-Rosa. Só conseguiu juntar o dinheiro necessário para o ingresso na última noite de estadia do Slamagov.
...Tinha chegado a sua vez de andar na Roda-Gigante. O enorme brinquedo piscava e girava e brilhava. Exalava uma magia toda própria, quase transcendental. Lúcia percebeu, ao sentar na cadeira da Roda, que aquilo se tratava de algo totalmente novo, emoção que nunca chegara nem perto de experimentar até ali. Em poucos segundos, a Roda começou a se movimentar. Chegava a faltar ar para os imaturos pulmões de Lúcia. Teve a nítida sensação de que poderia ficar ali a noite inteirinha. Sua cadeira chegou no ponto mais alto. Dali, era possível enxergar todo o Parque, o centro da cidade, quase até a sua casa. O vento gelado espalhava o cheiro de pipoca vermelha, tornando-o ainda mais forte. As risadas lá de baixo se misturavam à música; Lúcia não distinguia mais nenhum som particular: todos eles pareciam fundidos numa melodia única. Via uma explosão de cores, as quais parecia-lhe nunca ter notado.
...As percepções daquela noite invadiram-na novamente, enquanto vislumbrava o caminhão que trazia a Roda-Gigante Cor-de-Rosa. Sim, eles voltaram. Tudo aquilo estava ali, na sua frente. De novo. Dessa vez, ela não se contentaria apenas com os fugazes minutos da última noite. Sua vida girara, nos últimos dois anos, em torno das voltas da Roda-Gigante. Ela precisava de mais.
...Durante esse tempo de espera da volta do Parque, Lúcia economizou tudo que pôde. Seu objetivo era conseguir comprar um ingresso da Roda para cada noite que ela ficasse na cidade. Dessa vez, a temporada em Nossa Senhora dos Aflitos seria ainda mais curta, dizia o cartaz pregado em um dos caminhões: após três noites, o Parque já partiria para a próxima cidade, em busca de novas crianças para encantar.
...Continuava imobilizada. Os caminhões passaram, em direção ao centro, deixando para trás apenas uma grande nuvem de poeira. Ali mesmo, Lúcia decidiu. Terminada a terceira noite da temporada do Parque, daria um jeito de seguir viagem. No caminhão da Roda-Gigante Cor-de-Rosa, com cheiro de pipoca vermelha.

nov.08

3 comentários:

Renan Dias disse...

Ah, essas sensações do seu conto... Descrições perfeitas! E você arrumou a imagem ideal pra ilustrar! rs Parabéns =]

óli de castro disse...

hahaha
valeeu!!! esse é especial pra mim...
x)

Heitor Amílcar disse...

dos aqui lidos, o com mais fôlego - e estrutura narrativa potencial mesmo para um desenvolvimento maior. a menina, a estrada em pó, como numa brevíssima foto, tomada. que resgatam o passado - corpo maior do texto -, projetam tudo por vir - este, sim, a razão maior do escrito: o não redigido, potencial, por-vir. a ser escrito?
espera, contemplação, caminhões a passar e parque recordado. curtos e breves elementos, e ao mesmo tempo com respeitável força ficcional.
bela mão de texto!
gostei mesmo.
HA