20.7.09

O Desmascaramento do Ator – e a importância do trabalho com máscaras

para a disciplina de Teatro de Animação I, do prof. Felisberto Sabino da Costa.
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Depus a máscara, e tornei a pô-la.
Assim é melhor,
Assim sem a máscara.
Fernando Pessoa
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Estamos há apenas um semestre tendo aulas de Teatro de Animação. Para a maioria de nós, tem sido o primeiro contato com máscaras: trabalhamos com variados tipos de máscaras expressivas, desenvolvemos experiências com elas em diferentes jogos e situações cênicas, utilizamos objetos cotidianos como lenços, luvas, tampa para microondas, máscaras de mergulho ou de soldador, com a finalidade de descobrir o grau de expressividade de cada um deles.
...Mas, afinal, não nos vestimos com máscaras o tempo todo? No trabalho, assumimos o papel de profissionais; na escola, colocamos a máscara de estudantes; no bar, portamo-nos como amigos. O poema de Fernando Pessoa, que abre esse texto, questiona qual identidade é realmente a “máscara” e o que supostamente seria o “verdadeiro”; quando nos servimos de disfarces – não necessariamente no sentido negativo – e adotamos posturas e comportamentos diferentes dos que tínhamos anteriormente.
...Em meio a tantas máscaras sob as quais nos escondemos no dia-a-dia, por que então utilizar as de madeira, couro e outros materiais nos processos teatrais? Segundo Elizabeth Lopes, o treinamento com máscaras destina-se a “fornecer ao ator um instrumento para liberar inibições, eliminar vícios de interpretação e ampliar o potencial expressivo”.[2]
...Ao ocultar o rosto do ator, a máscara esconde a “persona social” dele, causando-lhe grave choque emocional por comprometer seu instrumento de comunicação. Como conseqüência de ter a “persona” coberta, para Jacques Copeau o ator vence parte de suas resistências íntimas e supera seus limites habituais.
...Para esse teatrólogo francês, a perda do rosto resulta em soltura por parte do ator, tendo como resultados o autoconhecimento e a pesquisa de inúmeras possibilidades corporais. Assim sendo, a máscara controla os movimentos do corpo, escondendo-se e revelando-o ao mesmo tempo. Em sua prática na escola do Vieux Colombier, em Paris, Copeau afirmava o objetivo mais importante da máscara neutra como sendo “despir” o ator e ajudá-lo a atingir um estado maior de concentração. Estado este tão bem descrito no livro de Paul Valéry, A Alma e a Dança, numa fala da personagem de Sócrates a respeito de uma bailarina dançando: “está inteira em seus olhos fechados, e sozinha com sua alma, no seio de alguma íntima atenção...”.[3]
...Discípulo de Copeau, o francês Jacques Lecoq defendia o trabalho com a máscara, tendo como finalidade de o ator entrar em um jogo maior que aquele do cotidiano, de buscar a essência da expressão, descartando suas banalidades. Segundo esse diretor, durante o uso da máscara os olhos do ator são substituídos pela cabeça. Justamente para tentar conseguir tal feito, praticamos em aula vários exercícios para os olhos. Além disso, ao dialogar com outro personagem mascarado, fica claro que não basta mais “olhar com os olhos”; deve-se mexer a cabeça toda, para indicar aos outros a direção do nosso olhar.
...Lecoq defende que o corpo, na representação com máscara, tem que estar em estado de alerta, de sustentação, daí a valorização do corpo em relação à cabeça. Tem-se como objetivo trabalhar o potencial expressivo do corpo e também usá-lo de maneira mais econômica. “Se o rosto está escondido, o corpo do ator torna-se um rosto inteiro, expressando à distância o que o rosto verdadeiro expressa em close up”, disse Jean Cocteau. Na sala de aula, colocamos em prática técnicas orientais que nos auxiliaram na busca do corpo em estado de atenção. Por sua vez, Ariane Mnouchkine resume: “no teatro, o corpo inteiro é mascarado”.[4]
...Quanto à formação com máscara de atores, Lopes ressalta que essa preparação não tem como objetivo o teatro mascarado, mas sim ser um suporte sólido para o ator poder abandonar a máscara e abordar com mais segurança a máscara metafórica dos próximos personagens.[5]
...Ainda no aprendizado com a máscara, outro aspecto importante, para Lecoq, é o “rejeu”, ou “re-jogo”, a partir do qual o universo da criança deve ser resgatado, conduzindo à “volta ao espírito lúdico, à brincadeira, por intermédio do jogo dramático”.[6] A finalidade desse processo é a recreação tornar-se (re)criação, “fazer com que o ator reencontre a liberdade de movimento que predomina na criança antes que a vida social imponha outros comportamentos”.[7] Nesse sentido, praticamos, durante as aulas, vários jogos que nos reportaram à infância. A descontração – diferente de desconcentração – resultante foi fundamental por diversos motivos, como o relaxamento corporal e a interação do grupo.
...Um dos exercícios mais praticados durante o semestre foi o “Equilíbrio do Plateau”. O jogo baseia-se no equilíbrio e no desequilíbrio de uma superfície cênica, posta em movimento pelo deslocamento dos atores. As primeiras tentativas foram repletas de desvios: atores entravam em momento indevido, roubavam o lugar do outro, deixavam de entrar quando havia espaço. Entretanto, com o passar dos meses, constatou-se grande avanço no equilíbrio do desenvolvimento do jogo. Experimentamos também fazê-lo com os rostos cobertos por panos brancos e, depois, com máscaras expressivas. Essas tentativas com novos desafios acrescentaram ganhos importantes no aprendizado da sala toda.
...Mnouchkine comenta ainda outro ganho do trabalho do ator com máscaras: quando representa sem máscara, sendo ele próprio, o ator começa a evidenciar muito fortemente uma representação dando privilégio à relação com o público.[8] Já Lecoq amplia o alcance do uso da máscara, ao afirmar que ela “conduz aqueles que a usam a uma dimensão sagrada, ritual”,[9] possibilitando-lhes um olhar para dentro deles mesmos.
...Ainda sobre a bailarina que dança magicamente, a personagem de Sócrates fala, no livro de Valéry:

Um olhar frio tomaria com facilidade por demente essa mulher bizarramente desenraizada, que se arranca sem cessar da própria forma, enquanto seus membros enlouquecidos parecem disputar entre si a terra e o ar; e que sua cabeça vai para trás, arrastando sobre o chão a solta cabeleira; e que uma de suas pernas está no lugar dessa cabeça; e que seu dedo traça não sei que sinais sobre a poeira!... Afinal, por que tudo isso? – Basta que a alma se fixe e faça uma recusa, para só conceber a estranheza e o repulsivo dessa agitação ridícula... Se quiseres, alma, tudo isso é absurdo![10]

...“Afinal, por que tudo isso?”, é a pergunta de Sócrates. Um trecho do livro A Dança, de Klauss Vianna, encaixa-se como resposta: “Todos somos, sem exceção, bailarinos da vida. Todos nos movemos para um único e fundamental objetivo: o autoconhecimento”.[11]
...E é justamente isso que o trabalho com máscaras e, mais amplamente, o teatro em si possibilitam: depor as máscaras do mundo e conhecer-se.

[1] PESSOA, 1986, p. 1.006.
[2] LOPES, 1991, p. 2.
[3] VALÉRY, 2005, p. 30.
[4] MNOUCHKINE, 1989. p. 4.
[5] COSTA, 2006, p. 74.
[6] Ibid., p. 72.
[7] Ibid., p. 72.
[8] MNOUCHKINE, 1989, p. 5.
[9] LECOQ, 1988, p. 7
[10] VALÉRY, 2005, p. 40.
[11] VIANNA, 1990, p. 14.
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Referências bibliográficas

BAUDRILLARD, Jean. O Destino. Difel, s/d.
BOURCIER, Paul. “A dança, dom dos imortais”. In: História da Dança no Ocidente. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
COSTA, Felisberto Sabino da. “Duas vezes Lopes + Zigrino: três experiências com máscara no Brasil”. In: Sala Preta. São Paulo: 2006.
KANTOR, Tadeuz. “Le masque”. Trad.: Valmor Beltrame. In: Le Masque – du rite au Théâtre. Paris: CRNS, 1989.
LECOQ, Jacques. “O corpo poético”. Trad.: Sassá Moretti. In: Les Cahiers Théâtre Education. Actes Sud-Papiers, 1997a.
______. Le Corps Poétique – Un enseignement de la creation théâtrale. Colab.: Jean-Gabriel Carasso e Jean-Claude Lallias. Paris: Actes Sud-Papiers, 1997b.
______. “Rolê du masque dans la formation del’acteur”. Trad.: Valmor Beltrame. In: Le Masque – du rite au Théâtre. Paris: CRNS, 1988.
______. “Como se move um coro?”. Trad.: Roberto Mollet. In: Le Théâtre du Geste. Paris: Bordus, 1987.
LOPES, Elizabeth Pereira. “Copeau e a máscara”. In: A Máscara e Formação do Ator. Tese apresentada ao Instituto de Artes da Unicamp, 1991.
MNOUCHKINE, Ariane. “A máscara: uma disciplina de base no Théâtre du Solei”. Trad.: Valmor Beltrame. In: Le Masque – Du rite au théâtre. Paris: CNRS, 1989
PESSOA, Fernando. Obras de Fernando Pessoa. Vol. I. Intr. e org.: António Quadros e Dalila Pereira da Costa. Porto: Lello & Irmão, 1986.
VALÉRY, Paul. A Alma e a Dança. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 2005.
VIANNA, Klauss. A Dança. São Paulo: Siciliano, 1990.
20/jul./09

Um comentário:

Renan Dias disse...

Rá: "A Dança" também permeou meu ensaio! hehehe Como você é estudiosa, Olizinha... babei na bibliografia! Acho que vou incluir "Olada da Óli" na bibliografia do meu ensaio, inclusive!! hahahahaha Felis vai adorar. Parabéns, querida! Quando vamos escrever algo juntos? hã? hã?