26.2.12

sobre mortes e renascimentos

Reflexão sobre o processo de estudo e montagem da peça Esta Propriedade Está Condenada, de Tennessee Williams, como projeto de Direção II, ministrado por Cibele Forjaz (ao longo do primeiro semestre de 2011)







O processo de Esta Propriedade Está Condenada foi bastante intenso na criação por parte do coletivo. Como tínhamos apresentações praticamente a cada quinze dias, estávamos quase sempre em estado de urgência, experimentando e criando, mas sem perder o foco em construir algo a ser mostrado em pouco tempo.
Nos dois primeiros meses, no processo dito textocêntrico, analisamos o texto de várias maneiras, desde sentados conversando sobre ele, na prática improvisando sobre o material e também fazendo juntos a nossa própria tradução para o português. Dividimos o texto em unidades, decidimos verbos de ação e realmente começamos a nos apropriar da história, dos personagens, dos conflitos. Criamos, nessa época, um “vocabulário cênico” comum, para partirmos da mesma base. Juntos.
No segundo mês, passamos a pesquisar a relação com cada espaço por onde o trilho-corda-bamba passava, decupando a proposta do trilho do trem como trilha de tecidos e cordas circular. É bastante claro que nos faltou tempo para criar essas relações com cada espaço, mas já naquele momento a pesquisa começava a se apontar. Montar, pelo menos em parte, o trilho a cada ensaio exigiu esforço e trabalho coletivos, o que acabou em parte esgarçando as energias dos atores. Por outro lado, passamos a entender cada vez mais o texto, ao relacioná-lo com os espaços. Fisicalizar a memória de Willie das festas no casarão amarelo foi uma opção que nos ajudou a perceber o ponto de vista dela, a realmente entrar na sua fantasia-memória. E fazer isso em um teatro e depois seguir para a propriedade condenada no corredor escuro abarrotado de móveis e cenários nos dizia muito respeito. A peça então nos era mais leve, mais azul, mais renda.
A passagem para a etapa cenocêntrica foi bastante crítica para mim, diretora. A pergunta “o que é vital para mim nessa peça?” era difícil de ser respondida. O que eu, nesse momento exato da minha vida, quero e preciso dizer com a obra?
Ter que apresentar para a sala um projeto de encenação para essa fase me fez refletir mais intensamente sobre essas questões (mais uma vez, o estado de urgência colocou-se). Percebi então que possíveis respostas estavam próximas ao processo desde os primeiros ensaios. No dia 29/03, ainda no nosso terceiro ensaio, havia surgido a pergunta “qual é a nossa corda-bamba?”. Ela se repetia ao longo das semanas, mas nunca tentei realmente respondê-la. O elemento corda-bamba havia surgido logo no primeiro ensaio, com a percepção de que Willie vem se equilibrando sozinha ao longo da sua vida. Os objetos propostos por Tennessee Williams deixam mais clara uma das camadas dessa corda-bamba: Willie começa a peça se equilibrando no trilho de trem com uma banana podre (símbolo sexual estragado) em uma mão e a Boneca Doida (brinquedo de criança) na outra. O limiar da menina obrigada a se tornar mulher antes do tempo.







Propus então um workshop com a pergunta “qual é a minha corda-bamba”. A partir dele, eu pude vislumbrar um caminho, a luzinha no final do túnel do nosso trem. Cheguei ao cerne da minha peça (ou seja, o que a peça representa para mim). Descobri que, para mim, é vital tratar, com essa peça, o assunto morte. A personagem Willie me toca profundamente ao reconhecer, por exemplo, que terá uma morte solitária (ao contrário de Greta Garbo, em Dama das Camélias).
À primeira vista, a menina nos pareceu extremamente sonhadora, iludida e quase mentirosa. Ao escavarmos algumas camadas do texto, fomos percebendo o grau de consciência de Willie em relação à sua vida. Ela sabia que os namorados da irmã tinham ido embora por medo de terem que pagar as despesas médicas da sua doença. Sob o seu ponto de vista, Willie é bastante pragmática: não achava a escola necessária, então a largou, reproduzindo o discurso da irmã, Alva, de que uma menina precisa apenas saber conviver na sociedade, para arranjar um bom casamento. No final da peça, após falar da sua morte solitária (mas com brincos de pérolas, diga-se), Willie divaga que, então, outra pessoa herdará os namorados dela, assim como ela os havia herdado da falecida irmã. É nesse momento que a consciência sobre a sua situação se torna ainda mais evidente: ela sabe que o ciclo da vida continuará, mesmo depois de sua morte, por se tratar de algo infinitamente maior do que ela, tão inalcançável quanto o céu branco que ela adora.




Percebemos então que a “propriedade condenada” não é somente o casarão amarelo da família, mas também a própria Willie, sem direito a futuro, sem perspectiva de melhora, algo que, para o “bem da sociedade”, deve ser destruído definitivamente.
O nome da personagem escolhido por Tennessee Williams, Willie, vem de Will, que, por sua vez, significa vontade, desejo, arbítrio, determinação, decisão e, principalmente para nós, testamento. Essa visão de Willie como testamento de Alva foi bastante importante para o nosso processo; esse “documento” filosófico e metafórico passado de geração em geração, ciclicamente, ad infinitum.
Percebemos que essa perspectiva já tinha sido experimentada na primeira proposta de encenação, traduzida pela corda-bamba (em substituição ao trilho de trem) circular, sem começo nem fim, na qual os personagens se equilibram durante a peça, realizando um longo trajeto ao ar livre, somente para voltar ao início no final da ação.
A partir do cerne da peça sendo morte, decidimos entrar em sala de ensaio, para podermos procurar as “miudezas” do texto, trabalhar a sutileza, ter um cuidado maior com o tema, partir de dentro para fora em vários níveis.
Esse mês que passamos dentro da sala 14 nos revelou diversas ações e novos sentidos para o texto. Jogando com os objetos propostos por mim, como tintas, tecidos soltos, penas, velas, fósforos, bacia, chaleira, bola, cabides e uma arara de ferro, os atores descobriram outras camadas na peça. Outro ponto marcante dessa etapa foram os poemas espalhados pela cena em envelopes pardos. Em qualquer momento que o ator ou a atriz sentisse necessidade, poderia pegar o envelope e se relacionar do modo que quisesse com o poema. Eu escolhi poemas que tratassem de morte, em diversos sentidos. Esse jogo nos trouxe outra atmosfera e ressaltou os momentos mais sombrios da peça, entretanto o resultado apresentado foi uma repetição do que já estava dito na peça. A morte ficou reiterada muitas vezes, tornando os poemas quase ilustração do tema.




Como sugerido pela turma de Direção II, voltamos então para fora, expurgando a experiência desse mês em sala. Retomamos nosso trilho-corda-bamba e pesquisamos mais profundamente cada espaço.
Do processo dentro da sala, trouxemos apenas os objetos que realmente diziam respeito à peça e a nós. Eles passaram a ser achados ao longo do trajeto e ser incorporados à ação aos poucos, ajudando os personagens a se locomoverem no trilho. Começamos também a interferir mais radicalmente nos espaços, colocando, por exemplo, muitos espelhos ao redor do lugar onde Willie fala da beleza de sua irmã, como de uma “artista de cinema”. Durante a divisão do público entre homens e mulheres, construímos ambientes próprios, dentro dos banheiros do hall dos teatros; o feminino complementando o texto sobre a Boneca Doida, com velas, incenso, pétalas, penas e perfume, e o masculino com o universo do Tom, constituído por um móbile de pin-ups, bebidas e cigarros.
Outro exemplo dessas interferências no espaço foi a criação da nossa “propriedade condenada” no corredor entre os teatros, com muitas faixas listradas de amarelo e preto, estojos de maquiagem, espelhos e caixinhas de música que seriam postas para tocar pela própria Willie passando pelo local. A ideia seria reconstituir o universo condenado herdado da irmã, Alva, justamente quando o diálogo trata da situação atual da propriedade.
No caso dessa passagem específica, fomos surpreendidos a menos de uma semana do ensaio geral por uma exposição super-organizada de maquetes pequenas e delicadas no local que utilizávamos. Haviam tirado todos os nossos móveis e nossa bagunça tão querida e coberto o chão com quilos e quilos de arroz. Nos deparamos com a triste realidade da burocracia que não havíamos cumprido, de reservar o corredor que nos parecia esquecido por todos (exceto por nós mesmos), onde jogavam cenários em desuso.
Em um ensaio de dez horas, criamos uma nova cena, utilizando agora a plateia do teatro como palco da propriedade condenada. Após a materialização, com uma música de baile estranhada e incômoda e a projeção deformada de uma festa antiga, da memória de Willie sobre as festas que aconteciam na sua casa, os atores passam então para a plateia, composta por móveis velhos e espelhos quebrados, espalhados por cima das poltronas. O público assiste a cena do palco, invertendo a tradicional relação palco-plateia. Ao longo da cena, Willie vai dando corda nas caixinhas de música, que, a princípio, soam leves e delicadas. Mas, quando várias delas estão tocando juntas, cada uma a sua música e em seu próprio ritmo, o ambiente torna-se hostil e novamente incômodo.
Uma decisão que ilustra a nossa transformação no entendimento da peça foi a mudança no figurino de Willie. Antes, azul, leve e rendado, passa a ser vermelho, de um tecido mais pesado, justo e curto.
A ideia é que Willie vá se compondo ao longo da peça, com objetos herdados da irmã, achados pelo percurso e então carregados com ela, como luva, echarpe, casaco, maquiagem, cinto. Conforme andamos, Willie vai se colocando no lugar de Alva, se preenchendo. Ao final, ficamos com a dúvida se ainda vemos Willie ou se estamos seguindo o fantasma da irmã. O conceito do ciclo, moto-contínuo, se efetiva fisicamente no trajeto circular e também na transformação da personagem.



Consentir a própria morte, e renascer, não é fácil.
F. Perls






trilha sonora da peça

2 comentários:

Heitor Amílcar disse...

bem legal essa nova cara! gostei. como tbém da inclusão de material de mais fôlego, pra lá do poético ou literário. muito bem-vinda essa ampliação -- ainda mais com tão boa documentação fotográfica...

Kiko Rieser disse...

MUITO legal essa reflexão sobre o processo!